Nos últimos anos, o movimento feminista começou a transbordar as bolhas de grupos sociais. A campanha e o estudo Chega de Fiu, realizado em 2013, conduzido e publicado ao longo de 2014 pela ONG Think Olga e a defensoria Pública do Estado de São Paulo, jogou holofotes à violência de gênero que a grande maioria das mulheres enfrenta, potencializado por questões raciais e classe econômica.

O movimento ganha mais engajamento em 2015 com as mobilizações online #meuPrimeiroAssedio – foram 82 mil tweets – e #meuAmigoSecreto, com outros milhares de posts, além do termo (rejeitado pelas feministas) “revenge porn”, ou pornografia de vingança, que se refere à disseminação online de imagens intimas sem consentimento da vítima foram assuntos que se tornaram assunto na grande mídia que antes não relatavam essas (urgentes) pautas.
Com isso, é seguro afirmar que as redes sociais são meios de debate, não cabendo mais o discurso de irrealidade inerente à internet que desqualificava interações e emoções que nela acontecem ou dela decorrem. O “mundo online” e o “off-line” se interacionam com os relatos de violência e assédio às discussões nas redes.

Nesse contexto, mulheres que manifestam opiniões dissidentes perturbam o sistema e têm como resposta direta recebem ameaças, enfrentam discursos de ódio e a privacidade invadida. Esses fatos evidenciam a continuidade da violência na internet como uma continuidade da misoginia e violência de gênero e a necessidade debater a intersecção entre gênero, sexualidade e direitos digitais.

A fim de compreender e contestar esse novo espaço público que é a internet, ciberativistas feministas, defensores dos direitos digitais, movimentos LGBTQI e ativistas pelos direitos de gênero lançam novas discussões e criam ferramentas práticas para além da difusão de pensamentos, mas de transformação de modos de existir.

Esses fatos evidenciam a continuidade da violência na internet como uma continuidade da misoginia e violência de gênero e a necessidade debater a intersecção entre gênero, sexualidade e direitos digitais

Como Fernanda Monteiro, pesquisadora independente de tecnologia de impacto social e colaboradora dos coletivos MariaLab, diz que as redes sociais são parte de seu objeto crítico de estudo uma vez que representam uma dicotomia: são espaços de esvaziamento de pautas e de diálogos; somam argumentos contra a de troca de ideias e discussões políticas devido à falta de segurança e privacidade para ativistas. Mas, ao mesmo tempo, é espaço a ser disputado para atingir justamente o cidadão que está fora das “bolhas políticas”.

Às ruas

Vimos que em 2015 no Brasil, o ambiente de discussão online ganha maiores dimensões e acaba por unir coletivos, ativistas e cidadãos em frentes que usam as redes como plataforma de organização para ações e campanhas efetivas que ocorreriam no ano seguinte. Para citar alguns exemplos, houve Marcha das Mulheres Negras protestando contra o machismo e marcadores sociais específicos, e a luta para barras ações legislativas da bancada fundamentalista como a PL 5069, encabeçada pelo então presidente da Câmara Eduardo Cunha que restringe o acesso ao atendimento de vítimas de violência sexual.

A pauta sobre a legalização do aborto torna-se popular tanto que novas tentativas de retrocesso surgem como a PEC 181/15 (também chamada de Cavalo de Tróia) que tenta inserir na Constituição a proibição do aborto, inclusive em casos que hoje são previstos pela constituição. A Proposta de Emenda à Constituição afeta todas as mulheres e é resultado de uma ofensiva ultraconservadora e em todas as datas em que os deputados votaram sobre as mudanças na lei, houve manifestação de militantes que se organizaram para ocupar as ruas em eventos criados pelo Facebook.

Apropriação tecnológica: discutir a natureza dos sistemas tecnológicos profundos

Durante o Encontro Latino Americano da Red de Investigadores de Apropiación de Tecnologías, em setembro de 2017, em Buenos Aires, a pesquisadora e doutora em comunicação contemporânea Graciela Natansohn, da Universidade Federal da Bahia, disse em entrevista à jornalista argentina Silvina Molina que “o movimento feminista latino-americano está iniciando uma apropriação da tecnologia digital que vai além do uso e discute a natureza dos sistemas tecnológicos profundos e não só a troca de conteúdo.”

E, de fato, está. Uma das ferramentas para a mobilização civil e online partiu da ONG Nossas, que une a tecnologia para potencializar as vozes dos cidadãos e intermediar questões no campo da política. A organização desenvolveu a chatbot Beta, que por meio de uma página no Facebook que ajuda a viralizar pautas e campanhas feministas usando mensagens inbox que a própria rede social oferece.

Os dados de quem interage com chatbot são protegidos legalmente por ambos os termos de uso, tanto do FB quanto do Nossas. Ou seja, o vazamento ou uso comercial é ilegal. Dados trocados com a Beta durante as conversas são armazenados nos servidores da ONG e têm a garantia de só serem utilizados pela equipe da Nossas. “Um dos diferenciais da Beta, ainda um protótipo, é não se valer da API de chatbot do Facebook para a interação, usando uma API própria que apenas usa a autenticação com o Facebook. Isso não resolve a questão da interação segura (criptografia fim-a-fim), mas garante que os dados sejam armazenados em servidor próprio e, no mínimo, a comunicação de dados é feita via SSL (HTTPS)”, explica Fernanda.

O modelo eu Beta usa é ético e transparente: toda a comunicação que é feita sobre como ela processa e coleta dados, e também o que é solicitado e quais as ações políticas que ela opera são transparentes para as usuárias e também para fora.

Durante a mais nova tentativa de votação da PEC Cavalo de Tróia, testei a ferramenta. Ela me ajudou a disparar e-mails aos deputados, como um abaixo assinado virtual, pressionando contra as alterações constitucionais.

A contradição que ela me explica faz sentido quando a janela de conversa com a chatbot Beta surge em dizendo que basta clicar com um “sim” ou “não” para enviar um e-mail aos deputados ou compartilhar pautas na timeline do Facebook e assim levantar questões importantes, transformando o “ativismo de sofá” em algo realmente produtivo.

“O modelo eu Beta usa é ético e transparente: toda a comunicação que é feita sobre como ela processa e coleta dados, e também o que é solicitado e quais as ações políticas que ela opera são transparentes para as usuárias e também para fora. Não são ações automáticas dentro do que ela opera no Facebook, ela não é um bot de coleta e análise de dados. É transparente com as ações, anônimo com os atores”, analisa Fernanda Monteiro.

A efetividade das campanhas pode ser vista por diversos ângulos e a conversão dos scripts (dentro do grupo de pessoas que iniciaram conversa com a Beta, quantas enviaram de fato a mensagem de pressão?); retorno/declarações públicas dos pressionados; capacidade de geração de mídia espontânea foram positivas até agora e esperam mais presença online. Mas, principalmente pela ação prática, que no caso da PEC 181 não foi votada. “Foram disparados 35 mil e-mails a cada um dos deputados da comissão técnica para esta PEC. Isso quer dizer que, além de congestionar os servidores e suas caixas de mensagens, eles perceberam que há pessoas que vão lutar e atrapalhar até serem ouvidas”, conta Laura Molinare, gerente de projetos do Nossas, do Rio de Janeiro.

Ilustración: Nossas

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