Introdução

No idioma iorubá (1), Yalodê é a palavra usada para se referir às mulheres que representam e falam em nome de outras mulheres, que emergem como líderes políticas e agentes de transformação, que são emblemáticas no desenvolvimento de suas comunidades, na defesa de direitos, na manutenção das tradições culturais e religiosas, e no desafio ao status quo pela luta contra os poderes estratificados da ordem dominante – machista, eurocentrada, baseada na exploração capitalista das pessoas e da natureza. (2) Essa foi a palavra escolhida para dar um nome local ao projeto Women-gov (3) no Brasil, assim ele pode ser entendido instantaneamente e facilmente pronunciado pelas participantes e suas comunidades. Yalodê é uma guerreira, e qualquer pessoa pode associar imediatamente o conceito ao grupo de mulheres que estão engajadas nessa iniciativa: mulheres fortes, engajadas e preparadas, prontas para levantar questões, apontar problemas, propor alternativas, liderar processos, e se empenhar nas mudanças urgentemente necessárias em nossas sociedades.

A questão primária que o projeto Women-gov aborda é: Como as tecnologias digitais podem ser utilizadas adequadamente para criar modelos de governança participativa que possibilitem mulheres marginalizadas social e economicamente em contextos locais a ganhar o centro do palco? Para este fim, as organizações parceiras estão trabalhando em cada lugar com os coletivos/organizações de mulheres no nível das bases, explorando as possibilidades oferecidas pelas tecnologias digitais para facilitar a mobilização política das mulheres, o seu engajamento ativo com estruturas de governança, e sua articulação coletiva e negociação de interesses. No Brasil, o Nupef está trabalhando com a organização não-governamental Criola (4) na implementação do projeto Yalodês. As Yalodês são um grupo de mulheres líderes de diferentes comunidades do Rio de Janeiro e outros municípios da Baixada Fluminense (5), que vem participando das iniciativas da Criola para o fortalecimento de capacidades e articulação política.

Na primeira reunião entre a equipe do Nupef e as participantes do projeto Yalodês, tornou-se claro que deve ser dada muita atenção à linguagem quando se trabalha com este grupo: nós fomos questionados/corrigidos duas vezes durante o encontro em relação às palavras que foram usadas. Ao explicar os objetivos do projeto, falando sobre o fortalecimento da participação política das mulheres e o aumento da influência das mulheres pobres e marginalizadas nos processos de tomada de decisões mais amplas que afetam suas vidas, fomos questionados: “Por que marginalizadas?”. Um pouco mais tarde, ao discutirmos como o uso estratégico das TICs pode aumentar o poder de informação, de associação e de comunicação de coletivos de mulheres, nós fomos (corretamente) lembrados: “Aqui, você está falando com coletivos de mulheres negras.”

A linguagem, além de ser profundamente ligada à identidade, pode ser um poderoso meio de exercer o controle social. Ela pode dar às pessoas um forte sentimento de pertencimento ou de exclusão. Isto é brilhantemente colocado no artigo de Jurema Werneck’s (6) “De Ialodês e Feministas”, onde ela afirma que “a capacidade de dar nomes às coisas refere-se a uma situação de poder. Então, é sobre a possibilidade de ordenar o mundo de acordo com uma base própria, singular, seja a partir de perspectivas individuais ou da perspectiva dos coletivos, de populações inteiras. É, portanto, uma posição de privilégio.” (7) Tornou-se claro para nós desde o início deste projeto que a linguagem, o poder das palavras e a força das vozes dessas mulheres seriam um dos pilares dessa construção coletiva.

A identidade afrobrasileira é fundamental neste projeto. A necessidade de diferenciar o feminismo do feminismo negro surgiu da nossa observação e prática – e é um dos aprendizados mais importantes para a nossa equipe de pesquisa. Movimentos de feministas negras têm salientado há anos que o patriarcado e o sexismo não podem ser dissociados da opressão de classe, do capitalismo, do colonialismo e do racismo – se a diversidade e a desigualdade não são abordadas na ação política feminista, existe o risco de que o próprio feminismo possa cair na armadilha de repetir as abordagens homogeneizantes e reducionistas, que aprofundam invisibilidades. É importante não esquecer que os consensos hegemônicos estão intimamente ligados ao silêncio, à desconsideração das diferenças, para o mascaramento de conflitos.

É neste cenário que o conceito de Yalodê surge.

Yalodês, voz e ação

De acordo com Werneck, “A liderança e a responsabilidade da mulher em lidar com questões religiosas transcendentais, e as questões culturais e políticas, é uma realidade muito antiga que antecede a história do colonialismo na África”. Entre as diversas manifestações possíveis do exercício da liderança política das mulheres está o Ialodê. Werneck destaca que as Ialodês vêm “confrontando as noções de centro e periferia”, durante séculos – através da promoção e da participação em “iniciativas que têm em comum o reconhecimento da liderança das mulheres, a presença de mulheres nas atividades públicas, bem como o papel político das mulheres”. Ela explica:

Ialodê também se refere à mulher que representa as mulheres, alguns tipos de mulheres emblemáticas, aquela que fala em nome de outras e participa dos espaços de poder. […] As ialodês, por outro lado, vêm afirmando a sua presença e relevância no século 21 através de narrativas corporais e orais, transmitidas de boca a ouvidos e olhos atentos, nos diferentes espaços onde a tradição é herdada e atualizada. No caso brasileiro, isso é visto em qualquer comunidade negra, onde as mulheres, que realizam papéis de liderança ou responsabilidade coletiva, desenvolvem ações de afirmação de um futuro para todos do grupo subordinado. Isso acontece através das lutas por melhorias nas condições materiais de vida, bem como no desenvolvimento de comportamentos e atividades que visam afirmar a pertinência e a atualidade da vida imaterial. Assim, não só nas comunidades religiosas afrobrasileiras, onde elas têm um papel fundamental na propagação do axé, (8) mas também fora dos espaços sagrados, o ialodê é atualizado, necessário e celebrado. (9)

Neste contexto, entendemos que a necessidade mais premente em termos de empoderamento e aumento da participação de coletivos de mulheres negras na governança local é fortalecer e amplificar as vozes dessas mulheres, especialmente visando um maior reconhecimento dessas líderes como atores políticos legítimos, melhorando a qualidade de seu impacto sobre as estruturas e processos de governança local. Aqui, a ampliação das vozes deve ser entendida de duas maneiras: em primeiro lugar, como a ressignificação e afirmação da voz das mulheres negras e colocação no ecossistema institucional local, que podemos ajudar a alcançar, apoiando-as em diferentes práticas para a produção discursiva e simbólica. A afirmação de suas vozes afeta a maneira como as Yalodês compreendem e situam-se nos processos democráticos, ajudando a estabelecer diálogos mais articulados e sustentáveis com atores estatais e não-estatais envolvidos nos processos de governança.

Em segundo lugar, essa amplificação pode ser entendida de uma maneira mais concreta: como a ampliação do alcance dessas vozes, tendo-as ouvidas em um espectro mais amplo de espaços políticos, por meio de processos que envolvem a identidade e a diferença, ou ao que Lister se refere como “uma política de reconhecimento e respeito”. (10) Como Gaventa e Jones observam, “(2002: 37) vozes dos Cidadãos provenientes de identidades que não são reconhecidas, nem mesmo respeitadas, não são suscetíveis de serem ouvidas.” (Gaventa, 2002) (11) Entre as Yalodês há um consenso sobre a necessidade de uma maior simetria nas suas relações com os poderes locais – mesmo em espaços concebidos para serem “participativos”, onde as formas mais deliberativas e inclusionárias de elaboração de políticas e governança democrática devem acontecer. Nossa hipótese é que o empoderamento de suas vozes faz com que seja mais fácil estabelecer os vínculos institucionais necessários para garantir seus direitos e prerrogativas, fundamentadas “em uma concepção de direitos que, em um contexto de desenvolvimento, reforça a condição de cidadãos de beneficiários do desenvolvimento aos seus requerentes legais e legítimos.” (12)

Espaços de participação

Entre a ampla comunidade de mulheres que responderam a pesquisa inicial do projeto, (13) é evidente que uma enorme lacuna existe entre o reconhecimento de seus direitos (incluindo o direito de reunião e de participação) e a realização de práticas para a afirmação e defesa dos direitos. Embora a grande maioria ache que as mulheres devem participar nos processos de tomada de decisões na comunidade (98,2% dos entrevistadas afirmaram isso), sua prática de participação ainda é muito ligada ao apoio a partidos políticos e candidatos durante as campanhas eleitorais. Esta participação é mais informada pelos maridos ou familiares (40,0%) ou depende das informações dadas por vizinhos e amigos (46,7%). Neste sentido, o papel das Yalodês é significativo em termos da possibilidade de alterar as estruturas de poder de modo que a informação vá em direção à periferia e venha dela, na construção de uma “nova geografia”. Nas palavras do Aminata Diaw, “A transição para a democracia é uma narrativa da exclusão das mulheres. O que é necessário é uma nova geografia para dar espaço às mulheres. Este novo espaço que as mulheres procuram é aquele em que há negociação entre aqueles com poder e aqueles sem poder.” (14)

Para essa negociação, uma voz empoderada, consistente, capaz de reafirmar a identidade de mulheres negras e assegurar sua inclusão em uma multiplicidade de espaços, é crucial. Isto significa não apenas ocupar os espaços existentes dentro da atual arquitetura de poder e governança, mas também criar espaços para articulação de significados novos e mais inclusivos. Os resultados da pesquisa nos mostram que esta é uma necessidade mais premente, como nas comunidades visitadas, os espaços políticos exclusivamente para as mulheres são inexistentes e/ou muito pouco conhecidos pela população: 40.8% das respondentes disseram que não existem espaços para a defesa dos direitos das mulheres na sua comunidade, e 28.6% disseram que elas não conhecem nenhum. Quando se trata da afirmação e defesa dos direitos das mulheres, os espaços mais frequentemente mencionados são associações de moradores locais (44.7%) e grupos religiosos (24.5%) – que são os espaços onde a maioria das Yalodês realizam o seu trabalho.

A abordagem feita por Cornwall (15) em sua análise dos tipos de “espaços” em que pode ocorrer a participação, foca a necessidade de compreender esses espaços nos contextos em que são criados. Em particular, como Gaventa aponta:

[…] [Cornwall] argumenta para distinguir, entre outros fatores, entre os “espaços convidados” criados a partir de cima através de doadores ou de intervenção governamental, e espaços que são escolhidos, tomados e demandados através da ação coletiva de baixo. Quaisquer que sejam suas origens, no entanto, nenhum espaço novo de participação é neutro, mas são moldados pelas relações de poder que os permeiam e os cercam. Enquanto a atenção tem sido dada para que os espaços e mecanismos existam para a participação pública, mais atenção, ela argumenta, deve ser dada a quem está criando esses espaços e por que, quem os preenche, e como os novos espaços carregam dentro de si “pistas e vestígios” de relações sociais, recursos e conhecimentos anteriores. O que impede os padrões há muito tempo estabelecidos de poder de serem reproduzidos? Quem fala, para quem, e quem é ouvido? (16)

A reflexão sobre os espaços de participação política deve ser contextualizada dentro das tradições políticas de cada lugar – porque o conceito de “participação” tem múltiplas nuances e significados. No Brasil, os novos modelos de políticas sociais foram iniciados com a promulgação da Constituição de 1988, que criou espaços para a interação com a sociedade civil direta na forma de conselhos locais e audiências públicas. “Os conselhos locais servem como espaços de reflexão e debate na concepção e acompanhamento de serviços sociais. Só na área da saúde, há mais 5 mil conselhos de saúde, quase um para cada um dos 5.507 municípios, proporcionando um estudo de caso em grande escala das tentativas de institucionalizar formas diretas de participação cidadã.” (17) É claro para muitos autores que estudam o funcionamento dos conselhos que os espaços sozinhos não garantem voz. “Apesar da garantia constitucional, há ainda a questão de saber se a maioria dos grupos marginalizados será capaz de articular a sua voz nessas arenas, e uma questão de alianças e acordos institucionais que os ajudem a fazê-lo.” (18) Nestes “espaços convidados” para participação, nem todo mundo se sente convidado – ou pelo menos nem todo mundo vê significado em ir às reuniões em que se observa em silêncio as decisões que estão sendo feitas. Como Coelho, Andrade e Montoya propõem, para a melhoria da participação dos cidadãos (tanto mulheres quanto homens) nos conselhos, “são necessárias abordagens mais amplas, que reconheçam a diversidade e identidades de atores locais e as maneiras nas quais elas podem ser antecipadas de direitos reivindicados pelas forças de exclusão socioeconômica.” (19) É importante reconhecer que no Brasil a política é um território das elites. Até 1930, os líderes políticos e donos de terras impunham suas escolhas de voto sobre os trabalhadores. Hoje, a prática da compra de votos é generalizada e comum. Votos e vozes têm sido uma moeda de troca desde o início da nossa república.

Etapas de ação

Esta análise nos leva à reflexão sobre como é crucial investir em iniciativas que são construídas sobre as dinâmicas inspiradas por aquilo que Freire propôs como uma “pedagogia do oprimido”, que consiste em duas etapas:

(1) Os oprimidos desvendam o mundo da opressão e através da prática comprometem-se a `transformá-lo, e (2) na segunda fase, na qual a realidade de opressão já foi transformada, esta pedagogia deixa de pertencer aos oprimidos e torna-se uma pedagogia da todas as pessoas no processo de libertação permanente.” (20)

As Yalodês deixaram claro para a nossa equipe como elas estão ansiosas por informações, conhecimentos e pensamento estratégico, a fim de entender e recuperar a linguagem política, para se comunicar melhor com as instituições de governança local, e levantar suas vozes para ganhar maior visibilidade e legitimidade, especialmente entre os atores de governança local. Muitas das participantes do projeto estão se sentindo reasseguradas, através da implementação do projeto, pela influência política legítima que possuem como líderes religiosas e espirituais, que estão lentamente percebendo a possibilidade de atuar como modelos de aproveitamento do conhecimento da comunidade, enquanto envolvem suas comunidades na externalização de questões através de autoria de informação e representações alternativas.

Referências

(1) Um idioma africano que é uma importante parte das origens da cultura brasileira.
(2) Para uma análise mais profunda do conceito e da história de Yalodê, veja: Werneck, J. (2005) De Ialodês e Feministas – Reflexões sobre a ação política das mulheres negras na América Latina e Caribe, Nouvelles Questions Feministes – Revue Internationale Francophone, 24(2).
(3) Women-gov é um projeto de pesquisa-ação feminista que visa reforçar a cidadania ativa das mulheres marginalizadas e seu envolvimento com a governança local, em três locais na Índia, Brasil e África do Sul. As organizações parceiras são IT for Change na Índia, Instituto Nupef no Brasil e New Women’s Movement na África do Sul. www.gender-is-citizenship.net/women-and-governance
(4) Criola é uma ONG fundada e dirigida por mulheres negras. Sua missão é “capacitar as mulheres negras, adolescentes e meninas para lutarem contra o racismo, sexismo e lesbofobia e empreenderem ações voltadas para a melhoria das condições de vida da população negra.”
(5) en.wikipedia.org/wiki/Baixada_Fluminense
(6) Jurema Werneck é uma das fundadoras e coordenadoras da Criola, ONG parceira do Nupef no projeto Women-gov no Brasil.
(7) Werneck (2005) Op. cit. Note que Jurema usa “Ialodê” em vez de “Yalodê”, por isso ambas a versões são usadas neste artigo.
(8) “Axé significa força, em um sentido existencial. Isto significa que axé é a base da existência, que a põe em movimento. Axé também pode ser entendido como o poder de produção e realização. Sem axé, a existência não existiria.”
(9) Werneck (2005) Op. cit.
(10) Lister, R. (2002) A politics of recognition and respect: Involving people with experience of poverty in decision making that affects their lives, Social Policy and Society, 1(1), p. 37-46.
(11) Gaventa, J. and Jones, E. (2002) Concepts of Citizenship: A Review, IDS, Brighton UK.
(12) Cornwall, A. (2000), citado em Gaventa and Jones (2002) Op. cit.
(13) Essa pesquisa foi respondida por 152 mulheres de diferentes lugares: uma favela no Rio de Janeiro e três comunidades da periferia dos municípios da Baixada Fluminense. A participação dessas mulheres na pesquisa foi facilitada pelas Yalodês, que convidaram e mobilizaram mulheres a vir para os seus centros ou, em algumas suituações, levaram a equipe de pesquisa para as casas das mulheres. A pesquisa foi conduzida em julho de 2012.
(14) Citado em Taylor, V. (2000) Marketisation of Governance: Critical Feminist Perspectives from the South, SADEP/DAWN.
(15) Cornwall, A., Gideon, J. and Wilson, K. (2008) Introduction: Reclaiming Feminism: Gender and Neoliberalism, IDS Bulletin, 39, p. 1-9.
(16) Gaventa, J. (2006) Finding the Spaces for Change: A Power Analysis, IDS Bulletin, 37, p. 23-33.
(17) Coelho, V. S. P., de Andrade, I. A. L. and Montoya, M. C. (2002) Deliberative fora and the democratisation of social policies in Brazil, IDS Bulletin, 33, p. 1-16.
(18) Ibid.
(19) Ibid.
(20) Freire, P. (1970) Pedagogy of the Oppressed, Herder and Herder, New York.

Year of publication

2013

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