Onde está o ponto “J” das mulheres? Pergunta Jan Moolman numa associação divertida com o ponto “G” ao referir-se a análise de Maria Suárez (Radio FIRE) sobre por que a Seção J não foi um tema prioritário durante a revisão dos 10 anos da Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre as Mulheres (Beijing+10). Moolman (concordando com Suárez) utiliza a palavra gueto para ressaltar que os temas mídia e tecnologias de informação e comunicação (TIC) não devem ser compreendidos isoladamente ou submetidos a uma lógica de hierarquias estáticas. Ao contrário, o tema da comunicação e das TIC assume um papel crucial em todas as áreas críticas enfocadas pela Plataforma de Beijing. Há urgência de se criar pontes entre os direitos humanos das mulheres e os processos políticos mais amplos relativos às novas TIC. Uma vez que estes processos englobam desafios que vão desde a autonomia econômica à autodeterminação sexual e reprodutiva.


Do mesmo modo, mas em sentido inverso, durante a Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI) foi imprescindível “humanizar” o processo trazendo para o centro do debate sobre brecha digital, TIC e governança da internet os consensos, conceitos e demandas de direitos humanos (inclusive os direitos sexuais); o direito à comunicação, à informação e ao conhecimento; as questões de desigualdade de gênero e as inúmeras assimetrias sociais na apropriação e desenvolvimento tecnológicos.


Nesse sentido, trata-se de “desguetizar” os temas, em particular aqueles relativos a direitos e justiça social. Trata-se de tirá-los dos becos aos quais haviam sido confinados na dinâmica pós 11 de setembro (de 2001) e recolocá-los em grandes avenidas, fluxos contínuos com seus pontos de conexão e passagens. A centralidade que as TIC possuem hoje no cotidiano de quase todas as pessoas exige máxima atenção para os processos em curso nos planos local e global e sua mútua influência. Exige compreender como essas relações vão tecendo a chamada sociedade da informação. O projeto EroTICs: An exploratory research project into sexuality and the internet realizado em cinco países, Brasil, Sudáfrica, Líbano, Índia e Estados Unidos visa preencher lacunas de conhecimento sobre esses processos dando relevo à dinâmicas e identidades excluídas do debate central, e estabelecendo nexos necessários para uma análise mais abrangente de práticas e políticas voltadas às TIC e a internet que são, muitas delas, contrárias ou restritivas, por exemplo, das liberdades individuais.


Nos últimos 15 anos, uma onda crescente de alarme sobre os perigos da internet (cibercrime, pornografia, pedofilia, fraudes, guerra cibernética) atinge todos os espaços, local e globalmente, onde o debate sobre a sociedade da informação se desenrola e decisões são tomadas. Entretanto, como sabemos, a internet é um potente meio de comunicação, informação, participação e interação entre pessoas e grupos. Identidades, normas sexuais e representações de gênero são desestabilizadas e recriadas através de ferramentas de sociabilidade como demonstram os estudos por países do EROTICS (em particular o estudo da África do Sul e da Índia). Alternativas às versões hegemônicas dos grandes meios de comunicação, poderosos grupos conservadores e/ou governos são elaboradas e disseminadas desencadeando redes de informação confiáveis e plurais. A internet, desde a sua origem, guarda um sentido de independência e liberdade sempre defendido quando estes princípios são ameaçados (o movimento “Mega Não” no Brasil é exemplo). Sexualidade e sexo, cristalizados na forma de pornografia e pedofilia, estão entre os assuntos que mais freqüentemente tem sido usados como justificativa para censura e controle da internet além de mobilizar grupos conservadores movidos por pânico moral que clamam pela “moralização” da internet.


Castells, em 1996, já afirmava que “com efeito, a pornografia infantil on-line é um dos principais argumentos favoráveis à criação de mecanismos de censura na internet. É mais fácil imputar a culpa ao autor da mensagem do que questionar as origens dessa mensagem, isto é, porque a nossa sociedade da informação participa desse tipo de atividade em escala tão assustadora” [1]. Desde então denúncias de abuso sexual infantil foram noticiadas pela mídia mundo afora. No qual os escândalos envolvendo a Igreja Católica continuam sendo objeto de atenção. A partir da Europa e dos Estados Unidos ações governamentais de combate a pedofilia serviram de exemplo e ponto de partida para o debate global e, também, para a implantação de políticas nacionais. O problema da pedofilia dominou a cena e ações policiais passaram a ser vistas como meio satisfatório para coibir práticas abusivas. Por fim, com o pretexto de coibir a pedofilia/pornografia criminaliza-se a sexualidade de um modo geral.


O Brasil esteve sob os holofotes nesse debate por causa da queda-de-braço com a Google em função do Orkut. Entretanto, a primeira etapa do debate sobre internet e infância no país, há aproximadamente 10 anos atrás, se concentrava nos aspectos relacionados a educação, desigualdade de acesso entre classes sociais, adicção no casos dos jogos eletrônicos. Esse debate tornou-se secundário diante do alarme da pedofilia que abriu espaço para soluções draconianas. O mesmo ocorreu em outros países.


Nos Estados Unidos a restrição do acesso a conteúdos descritos como pornográficos foi feita via uma legislação [2] cuja linguagem é vaga e depende da interpretação de quem a implementa, propiciando, assim, condições para a censura prévia de conteúdos sobre saúde e direitos sexuais e reprodutivos, por exemplo sobre HIV/AIDS. Na Alemanha foi aprovada uma lei que autoriza a implementação de filtros para vigilância de conteúdos e usuários [3].


Observa-se, ao longo de mais de uma década, um movimento pendular, simultâneo, entre global e local em que progressivamente trincheiras foram sendo armadas, às vezes de modo artificial, criando a sensação de uma posição radical e maniqueísta em torno do vigiar e punir os “mal” usuários da internet, do qual vários setores tiraram partido. Do sistema financeiro à mega-indústria cultural, de governos autoritários a democracias participativas se defende a falsa idéia de que temos que escolher entre liberdade ou responsabilidade/proteção. De fato, seguindo o que ocorreu com relação ao terrorismo, o discurso de combate a pedofilia foi muito eficiente para deblitar o direito a privacidade.


Conforme afirma o estudo brasileiro, isso demonstra que gênero e sexualidade estão presentes no centro das políticas de regulação da internet. Não só para justificar idéias “brilhantes” de controle, como a do Oficial de Estratégia e Chefe de Pesquisa da Microsoft, Craig Mundie, que durante o Fórum Econômico Mundial (2010) propôs a criação de uma “habilitação” para a internet (internet licencing system) e de uma espécie de Organização Mundial da Saúde para a Internet [4]! A parte o fim do anonimato na rede (o que tornaria inviável a maior presença de jovens mulheres indianas na internet, segundo o estudo da Índia), ressurge também na cena política sobre governança da internet o controvertido “triple X” [5]. Para quem não acompanhou a polêmica, trata-se de autorizar a criação do domínio .xxx destinado aos conteúdos de cunho sexual, particularmente os produzidos pela indústria pornográfica. O .xxx foi proposto e rejeitado 3 vezes! E atraiu tanto a fúria de grupos conservadores religiosos nos Estados Unidos, quanto a oposição de vários produtores do setor pornográfico, resultando em algumas contradições. Enquanto havia grupos religiosos que viram nisso uma oportunidade de segregar esses conteúdos, outros entenderam que essa seria uma estratégia de crescimento da oferta de sexo na internet e, portanto, era necessário apelar pela sua rejeição. Por outro lado, parte da indústria pornográfica não queria ser confinada no gueto (red-light districts) e não concordaram com a proposta preferindo manter seus negócios associados ao domínio .com como ocorre atualmente. Com tudo o que suscita este tipo de debate, feministas e movimento LGBTT [6] se mantiveram ausentes...


A importância da comunicação e das TIC no mundo globalizado é medida não apenas pelo volume de recursos financeiros que mobilizam, mas também (recordando a Maria Suaréz) pelas agendas tanto no plano nacional, quanto internacional que são capazes de (re)definir, incluindo-se aqui aspectos relativos a privacidade e liberdades individuais. É neste sentido que eu convido a ler os artigos produzidos pelo EroTICs.


 


Magaly Pazello é doutoranda da Universidade Federal do Rio de Janeiro e tem Mestrado em Letras Neolatinas. É especialista em gênero e novas tecnologias de informação e comunicação (TIC) com mais de 15 anos de experiência em projetos sociais, advocacy e pesquisa trabalhando com ONGs nacionais e internacionais. Atualmente acompanha os debates sobre governança da internet e a relação com os temas de gênero. Magaly participou ativamente de todo o processo da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI) como integrante da Rede DAWN network. Ela também é pesquisadora associada do EMERGE-Centro de Pesquisas e Produção em Comunicação e Emergência/Universidade Federal Fluminense, e membro do PARM-APC.


 


Notas


[1] Castells, M. Fim de Milênio. São Paulo: Paz e Terra, 1999 (p.185)


[2] CIPA- Children’s Internet Protection Act (Ato de Proteção das Crianças na Internet) foi aprovada no Congresso Nacional dos Estados Unidos em 2000. Echols e Ditmore, autoras do artigo sobre os Estados Unidos, analisam a questão.


[3] The Dawning of Internet Censorhip in Germany http://advocacy.globalvoicesonline.org/2009/06/16/the-dawning-of-internet-censorship-in-germany/


German President Köhler signed Internet filter law http://opennet.net/blog/2010/03/german-president-k%C3%B6hler-signed-internet-filter-law


[4] The Rising Tide of Internet Censorship http://www.corbettreport.com/articles/20100205_rising_tide_internet_censorship.htm


[5] Revenge of the .xxx domain? http://blog.internetgovernance.org/blog/_archives/2009/1/23/4067728.html


.XXX Registry to ICANN: "We must protect our rights" http://domainnamewire.com/2010/02/27/xxx-registry-to-icann-we-must-protect-our-rights/


Saucy sites to get .xxx TLD http://www.theregister.co.uk/2005/06/03/xxx_tld/


ICANN to Mull .XXX, .GOD Domains http://www.christianpost.com/article/20100310/icann-to-discuss-god-xxx-domains/index.html


Dot Triple X http://www.onthemedia.org/yore/transcripts/transcripts_090205_triple.html


[6] Lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e transgêneros.


 


 




Nesta edição:


¿Quién le teme a la malvada internet?


Regulação das TIC no contexto erótico brasileiro


¿Qué es "dañino para menores"? Organización aliada de EROTICS investiga el uso de filtros de búsqueda en bibliotecas públicas de Estados Unidos


Negociación de identidades transgénero en un sitio web sudafricano


O mercado virtual do sexo

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