Illustration by Natalia Vargas for GenderIT

Neste texto no estilo "realismo fantástico", nós, da Rede Transfeminista de Cuidados Digitais11, compartilhamos um pouco das reflexões e experiências do nosso ativismo junto a pessoas e organizações feministas e LGBTQIAP+, com conteúdo, metodologia e práticas de processos de aprendizagem em cuidados integrais. Também partilhamos reflexões acerca do que é o cuidado transfeminista dentro de nossos próprios contextos.

O texto tem uma escrita circular. São ideias que não se fecham, nem se encerram, mas que se abrem. Possibilidades incertas, mas possíveis! Vidas, ideias e lutas realizadas em ciclos, carregadas de sabedorias ancestrais.

Através de personagens monstres com corpos dissidentes, fazemos nosso manifesto radical do cuidado, apresentando saberes, tecnologias e metodologias que garantem não apenas a subsistência, mas a alegria, afeto, tesão, criatividade, mesmo diante de tantas violências e dificuldades enfrentadas na realização de nossos propósitos ativistas.

Estamos construindo nossos conhecimentos acerca do cuidado entre ativistas e Defensoras de Direitos Humanos (DDHs) e da Terra, através de muita reflexão e prática coletiva, a partir do sentir, da sensibilidade, da intuição, da empatia e da escuta. A grande subversão e potencial de transformação do cuidado se dá nos pequenos gestos, nas comunicações que acontecem no silêncio, nas mudanças internas que se dão na relação uns com os outres e no poder do sentir.

O texto também busca partilhar que, para nós, a tecnologia só faz sentido se estiver a serviço da vida e do bem viver e que sendo monstres ou não, a vida se dá em comunidade, na coletividade. É na relação entre nós, com o todo, e com cada ser que está a nossa volta.

Nos vulnerabilizamos para falar sobre o cuidado e o sentir a partir de nossas caminhadas! E que somos orgulhosamente monstres, subversivamente monstres, honramos nosso passado, celebramos o nosso presente e encurtamos a distância para nossos futuros ecotransfeministas.

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Monstres Insubordinades: O Manifesto

Já não somos humanes, desde que o mundo passou a distinguir os próprios semelhantes, deixamos de ser humanes! E, assim, nos transmutamos para sermos a existência de nossa essência. Somos monstres, somos biches, somos o rio que escorre até o oceano, e também a lava destruidora e fértil do vulcão, a força dos tornados.

Somos frutos da decomposição de cada corpo que tombou. Fruto da dor, que nos diferenciou e diferencia por nossa raça, gênero, sexualidade, território, crença, que tenta nos subjugar e nos tirar dos espaços de abundância e bem viver, mas insistimos em voltar.

Olhamos e reverenciamos o passado, celebrando o presente, em permanente construção de futuros ecotransfeministas, e não aceitamos nada menos que isto. Futuros, com S mesmo, de todas as possibilidades de futuros que construímos hora após hora, dia após dia, mês após mês, ano após ano, geração após geração, assim, em circularidade, ciclicamente, a soma da existência e sabedoria de todes.

MONSTRES! Múltiples e singulares, vivendo em bandos por sobrevivência, mas também por prazer, com sede e fome de viver, amar e SER!

Indomesticáveis, incontroláveis e indomáveis, e por isso temides, se não temides porque tão perseguides? Nosso poder é a raiva, a rebeldia, mas é também a empatia e a alegria!

Por que eles nos combatem? Por que pensam que somos monstros perigosos? Por que somos monstros perigosos? Porque desequilibramos e muitas vezes rompemos as confortáveis imagens estereotipadas que os brancos têm de nós. (Gloria Anzaldúa, 2000, p. 230)

Por isso, o afeto, o gozo e a alegria, ninguém nos tira! Que nos sustenta e sustenta o nascer e morrer do sol e da lua, a mudança das estações, o ar que entra e sai num ritmo próprio de cada ume de nós.

E a cada encontro, a cada olhar que se encontra, a cada conspiração e até mesmo quando sentamos juntes em silêncio, geramos sementes, férteis e múltiplas sementes ecotransfeministas, sementes carregadas e recarregadas de sabedoria e tecnologias a cada ciclo e geração. A cada risada, dança, canto, florescemos e assim somos monstres e também floresta.

Conforme amadurecemos, viramos novamente fruto, inspiramos com odores e cores, alimentamos com sabores e nutrientes todo tipo de existência, e viramos novamente sementes, múltiplas sementes a serem levadas pela chuva, por bicos, pêlos, levadas para novos territórios pelo vento.

Assim não somos só monstres, somos ar, minerais, eletricidade, água, carbono, células, moléculas, no fim somos tudo uma mesma coisa, indivisível, indissociável. Ume monstre não existe sem es demais monstres, e também não existe sem o mar, sem montanhas, sem os microrganismos da terra, sem o som dos pássaros, sem as mudanças das estações, sem o som das cigarras, sem o cheiro da chuva.

A nossa existência pede radicalidade em nossas ações, palavras, vivências. Mas nossos corpos, mentes e corações, são muito mais que as violências, apagamentos e batalhas contracoloniais, são também liberdade, tesão, criatividade e muito mais, transformamos tudo ao nosso redor, com nossa presença e sensibilidades sensoriais e extra sensoriais, temos ouvidos muito maiores que nossas bocas, olhos atentos: receptores para além da imagem, que captam sensações e intenções.

Nossas peles, escamas e pelos são capazes de captar sutis vibrações, nos dando o poder da escuta ativa e do tato além do toque e do sentir empático, carregamos em nossas células habilidades do cuidado, capacidades para resolver conflitos e amenizar dores, curamos até o incurável, e na coletividade criamos encantamentos capazes de abrir montanhas, mover constelações e amolecer o mais duro dos metais.

Nosso sustento é para não perdermos a capacidade de afetar, mesmo diante da precariedade, da barbárie, resistimos. Buscamos a beleza nos pequenos gestos, retroalimentamos nossas esperanças em exercícios de construção e reconstrução de novos futuros dia após dia, amamos umes es outres e a nós mesmes como merecemos, e na reciprocidade das intenções nos fortacelemos, confabulamos e sonhamos.

E como monstres ousades que somos, produzimos nossas tecnologias

Métodos e tecnologias, comprometidas com a vida, com a sustentação da vida, com a continuidade da vida, e não apenas a nossa, e não apenas des monstres, mas de todas as vidas, por que não existimos uns sem os outres, seres sencientes e não sencientes, animados ou inanimados do reino vegetal, mineral, animal, espiritual ou cosmoexistêncial.

Por sustentação da vida entendemos nossas continuidades, em solos fortalecidos pelas tecnologias de cuidados, sem venenos, sem degradação, sem barragens. Inspiradas em nossas ancestrais, também refutamos as crenças culturais/religiosas coletivas de origem masculina, questionamos as definições de luz e de escuro, damos novos significados ao mundo morto e nós mesmes é que vamos explicar nossa participação nas pluralidades destes mundos: 

Sou sem cultura porque, como uma feminista, desafio as crenças culturais/religiosas coletivas de origem masculina dos indo-hispânicos e anglos; entretanto, tenho cultura porque estou participando da criação de uma outra cultura, uma nova história para explicar o mundo e a nossa participação nele, um novo sistema de valores com imagens e símbolos que nos conectam um/a ao/à outro/a e ao planeta. Soy un amasamiento, sou um ato de juntar e unir que não apenas produz uma criatura tanto da luz como da escuridão, mas também uma criatura que questiona as definições de luz e de escuro e dá-lhes novos significados. (Gloria Anzaldúa, 2005, p. 708)

Nos opomos às tecnologias de exploração e controle, perpetuando as múltiplas tecnologias e estratégias desenvolvidas para a vida! Somos produtoras de tecnologias, ancestrais, da gambiarra, digitais, de segurança, de sobrevivência, do possível. Todas orientadas a cuidar de nós mesmas e de nossa rede de apoio, elaborando saberes desde o afeto.

Não hierarquizamos os conhecimentos, nem todas as línguas faladas e linguagens acionadas, não permitimos que um discurso e uma dúvida sejam considerados pequenos, acolhemos as histórias, as lutas, os ritmos, os grafismos e as conquistas de todes. Se considerarmos que toda infraestrutura é política, a infraestrutura do afeto é uma decisão político-metodológico cujos pilares são o compartilhamento e o conhecimento livre.

É uma metodologia monstra de trabalho que busca estabelecer vínculos afetivos, mais do que chegar ao seu fim. Tem interesse em ouvir, a palavra é soberana e confiamos umes nas outras, no processo e no tempo.

Essa intersecção é onde encontramos nossas monstruosidades. Ali entre as infraestruturas, afetos e saberes. Entre territorialidades, tecnologias e transcestralidades. É naquele balão, aparentemente pequeno e vazio, que nossas sementes florescem e delas surgimos com nossas monstruosidades.

Nossas infraestruturas são as subversões, nossos afetos são as nossas redes e nossas coletividades, nossos saberes são assíncronos e neles estão as histórias das nossas transcestralidades, que também nos remetem aos nossos futuros. E assim cultivamos uma infraestrutura de afeto, de onde chamamos todes para que nos encontremos em nossas jornadas monstres.

E por meio deste manifesto, convocamos que juntes espalhemos nossas sementes, para que brotem monstres em forma de árvores andantes, seres das fronteiras onde tudo se encontra e se mistura.

Footnotes

Referências

Anzaldúa, Gloria. (2000). Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista Estudos Feministas, 08(01), 229-236. Recuperado em 03 de novembro de 2023, de http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026x2000000100017&lng=pt&tlng=pt.  

Anzaldúa, Gloria. (2005). La conciencia de la mestiza: rumo a uma nova consciência. Revista Estudos Feministas, 13(3), 704–719. https://www.scielo.br/j/ref/a/fL7SmwjzjDJQ5WQZbvYzczb/

A Rede Transfeminista de Cuidados Digitais (RTCD), desde 2018 está articulada entre pessoas ativistas e organizações da sociedade civil (MariaLab/Vedetas, Coding Rights, Cl4ndestina e Blogueiras Negras) que trabalham com segurança da informação, no Brasil. O surgimento da RTCD foi uma resposta diante das mudanças drásticas no cenário político nacional e ao aumento de demanda por informações e treinamentos para nos protegermos no uso das tecnologias dentro do campo da Defesa dos Direitos Humanos e da Terra. 

A Rede Transfeminista é formada por um grupo diversificado de pessoas com vasta experiência e diferentes habilidades e conhecimentos, incluindo perfis técnicos e pedagógicos, além de cuidado coletivo, autocuidado e saúde holística, proporcionando um ambiente de grande troca, apoio mútuo e diversidade de abordagens à tecnologia,

Nosso propósito é diversificar vozes/corpos/práticas/metodologias de cuidados para capacitar mulheres, pessoas trans e LGBTQIAPN+ a serem protagonistas em tecnologias e afetar a mudança por meio de solidariedade e relações de confiança com grupos e ativistas de direitos humanos.

Trabalhamos a segurança da informação sob a perspetiva do cuidado e do afeto no desenho de nossos projetos, como fizemos no nosso querido site https://pratododia.org, que trabalha o paralelo entre segurança e soberania alimentar e cuidados digitais.

Entendemos a segurança da informação não só como um conjunto de práticas que protegem nossos dados, nossa atuação online e nossas vidas, de igual importância é nossa soberania digital, que promovemos através do uso e desenvolvimento de softwares livres e abertos, sem deixar de lado um olhar amplo sobre o valor das nossas informações sejam elas publicações em redes sociais, pesquisas ou mesmo nossa navegação na internet de modo geral.

Percebemos a urgência de investir na multiplicação e descentralização do conhecimento em segurança digital e infraestruturas feministas, incentivando mais formadoras que respeitem a especificidade territorial e cultural das causas, lutas e realidades por meio de metodologias transfeministas e antirracistas em todo o Brasil.

Além do cuidado digital, a Rede Transfeminista promove a narrativa de que o acesso e o uso da tecnologia são uma escolha e uma luta política. Assim, abordamos questões como identidades on-line, o papel do anonimato, tecnologias livres e autônomas, proteção de dados, o corpo digital, gênero, autoestima e o impacto da tecnologia em comunidades e coletivos transfeministas e ativistas.

1. https://pratododia.org
Divulga os cuidados digitais a partir de uma narrativa transfeminista e afetiva, fazendo o paralelo entre cuidados digitais e segurança e soberania alimentar. [pt][en][es]
 
2. https://www.apc.org/en/cuidados-digitais-para-ativistas-feministas
Este infográfico compartilha todo o processo da "Gincana Monstra", um processo aprendizagem online em cuidados integrais, com 27 ativistas brasileires. Foi um processo focado na alegria, empatia, criação de laços e redes de solidariedade num momento muito difícil do contexto brasileiro. [en][pt]
 
3 - https://en.ftx.apc.org/shelves/gincana-monstra-abrindo-o-codigo
Nossos processos de aprendizagem evoluiram e aprofundamos os processos pedagógicos e metodológicos transfeministas, no que chamamos de "Infraestruturas do Afeto", este é o resultado de nossas experiências, culminando com um processo de aprendizagem online com faciltadoras em cuidados digitais, na sua maioria do sul Global, que virou o Módulo na Plataforma FTX, da APC, chamado "Gincana Monstra: Abrindo o código".
 
4 - https://sursiendo.org/tecnoafecciones/
Fizemos uma pequena colaboração, neste texto da Sursiendo, falando um pouco sobre o entendimento do que chamamos de Infraeturas de Afeto, ou seja de infraestruturas que estão a serviço da vida!
 
5 - https://desvelar.org/wp-content/uploads/2023/11/Griots-e-Tecnologias-Digitais.pdf
Livro: Griots e Tecnologias Digitais. Concebido. Organizado por Thiane Neves Barros (UFPA) e Tarcízio Silva (UFABC / Mozilla), a obra tem como objetivo contribuir com o resgate de ensinamentos ancestrais nos debates contemporâneos emergentes. Versão digital para download. [pt]

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