Illustration by Natalia Vargas for GenderIT

Se fecho os olhos, me lembro da atmosfera mística gerada por uma fumaça constante, provindo de uma espécie de lago impossivelmente azul. O vapor sinalizava uma atividade insondável que ia para além da presença inerte das montanhas de pedra. Era o meu primeiro sentir um vulcão. Seu evidente magnetismo alvoroçou a todas nós visitantes. Mesmo a mim, que há dias tinha o estômago num estado de revolta, também chamado de intoxicação alimentar.

A subida até o Poás foi sinuosa; para dizer o mínimo sobre o lento processo de deixar para trás o agito da cidade de San José, capital da Costa Rica, e substituir, curva a curva, a paisagem na janela por um verde não menos vibrante. Parecia um rito de passagem necessário que nos preparava para o contato com aquele portal entre o reino da superfície e o coração da terra.

A poeta americana Adrienne Rich descreve de forma esplêndida:

Every peak is a crater. This is the law of volcanoes,

making them eternally and visibly female.

No height without depth, without a burning core,

[...]

that detail outside ourselves that brings us to ourselves,

was here before us, knew we would come, and sees beyond us.[1]

O impacto dessa travessia (no meu estômago, mas mais que isso) no meu estado de presença me levou a pensar sobre os processos que nos possibilitam alcançar dimensões mais profundas do sentir e pensar coletivo e individual. Quais práticas nos auxiliam nas produções criativas que servem à coletividade? Que atividades nos sintonizam com o planeta? Fui convidada a estar entre mulheres e pessoas não binárias na Casa Batsú por três dias pensando sobre tecnologia a partir de uma perspectiva feminista centrada na experiência da América Latina e Caribe.

Na volta para casa, ao compartilhar relatos do que vivemos naqueles dias, me vi contemplando a sensação de ter vivenciado um encontro especial. Percebi que a forma como tudo se construiu foi essencial para a qualidade da experiência e para a riqueza de conteúdo desenvolvido a partir dela. Não havia expectativa fixa sobre resultados, e isso foi deixado claro de primeira. Essa descompressão trouxe um relaxamento no campo, abrindo brechas inesperadas para a expressão criativa. Foi como se o magma, essa mistura derretida de elementos comuns à toda vida terrestre, encontrasse nas nossas práticas os caminhos até a superfície. Pesquisando aprendi que quando o magma encontra passagem até a superfície ele se torna lava. Nesse encontro com a atmosfera a lava esfria e torna-se rocha, que por sua vez constitui novos terrenos que podemos habitar.

Nos dias de encontro, a ausência de pragmatismo em relação a um desempenho não significou falta de estrutura. Pelo contrário. O que havia era uma amabilidade para com os processos, uma ação repleta de intenção de sacralizar as atividades. Nossas anotações trazem na descrição do processo de início do encontro palavras como: ritual, estabelecimento das intenções, cocriação de espaço e acordos. Quando Bell Hooks propõe a ideia de amor enquanto ação e define esse ato como “a vontade de se empenhar ao máximo para promover o próprio crescimento espiritual ou o de outra pessoa”, vejo esse amor vivo na experiência que construímos juntas.

Durante aqueles dias, as mulheres Cabécar, excepcionais defensoras de seu território e cultura, tiveram a incrível generosidade de partilhar seus relatos e percepções, nos ensinando pelo seu exemplo vivo um pouco sobre como a inovação pode apoiar, proteger e nutrir a ancestralidade desde que um grau de autonomia se conserve nos processos. Na minha experiência pessoal, somou-se a isso o incrível cuidado consagrado ao meu estado enfermo. Não houve uma pessoa presente que não tenha feito parte da minha recuperação. Através de gestos de cuidado, olhares empáticos, ofertas de remédios do ocidente e oriente, de simples espaço e tempo para que eu vivesse meu processo, senti o calor do coletivo me revitalizando.

Tudo aquilo que foge ao roteiro e às programações, e talvez precisamente por isso, pôde ser dar naquela casa incrivelmente acolhedora, com suas portas em arco e chão de madeira onde nos sentamos em roda. Naquele espaço fundamentalmente coletivo, a vibração das presenças anteriores a nós era palpável, como se as alegrias partilhadas tivessem ficado impressas nas paredes coloridas. Foi ali que nossos núcleos, individualmente quentes, entraram juntos em ebulição, estimulados pelo encontro. E assim o magma, ficando cada vez menos denso, foi sendo levado para cima pelas frestas, chegando até o lugar comum. Na superfície, feito em rocha, criou novos territórios; espaços afetivos, artísticos e intelectuais onde cada uma de nós pode habitar.

As experiências atuais de criação das tecnologias digitais estão também imbuídas desse espírito? Percorremos com integridade os caminhos sinuosos até os picos da inovação? Nos corresponsabilizamos pela vertigem? 

Fica claro que não, diante dos incontáveis desafios decorrentes da forma como produzimos e utilizamos as tecnologias digitais enquanto sociedade. Um exemplo flagrante é a injustiça socioambiental, que se expressa inclusive na própria linguagem utilizada para denominar atuais processos tecnológicos. Como um exemplo pontual trago a mineração de dados. Vivendo em um país onde a mineração da terra por seus metais devasta territórios e promove o genocídio de povos originários, foi chocante para mim descobrir a serenidade com que a big tech nomeia essa prática. Enquanto isso, "a Bitcoin, maior criptomoeda do mundo, consome atualmente cerca de 150 terawatts-hora de eletricidade por ano - mais do que todo o país da Argentina, com 45 milhões de habitantes. A produção dessa energia emite cerca de 65 megatoneladas de dióxido de carbono para a atmosfera anualmente - comparável às emissões da Grécia - tornando a criptomoeda um contribuinte significativo para a poluição atmosférica global e as alterações climáticas."[2]

Quando o ser humano, em sua busca pela inovação a qualquer custo, crendo cegamente na pureza de seu intuito de solucionar problemas coletivos, produz novas tecnologias, o que é ignorado nos processos? Quando 'o que' se cria importa muito mais do que 'como' isso se dá? Quais princípios deixam de ser considerados, ritualizados, escutados? E o que arriscamos ao lidar com este processo dessa forma? Nesse sentido estamos falhando enquanto coletivo. Nossa ascensão desmesurada gera profundezas que dificilmente saberemos sondar, pois não nos preparamos adequadamente.

'Não há altura sem profundidade e todo pico é uma cratera', diz Rich .O que 'estava ali desde antes de nós, sabia que viríamos, e enxerga mais além'? Aquilo que fica em segundo plano pode ser justamente o elemento que falta para sairmos de um ciclo de desequilíbrio autodestrutivo. Assim como as vozes das comunidades originárias, silenciadas pelo extermínio sistemático, são as únicas que compõem saberes capazes de mudar o curso da nossa extinção em massa. Mudar os resultados obtidos implica necessariamente em transformar as práticas.

Ao repudiar o uso de linguagens e práticas de exploração, quais narrativas podemos convocar para que possamos imaginar tecnologias que apontem para o cuidado em todas as esferas?

Na mitologia Iorubá há um Orixá que nos ensina isso. O guerreiro Ogum (Ògún) dá aos humanos o segredo do ferro e do fogo e forja as ferramentas que permitem nossos avanços. Por isso é precisamente ele quem é identificado como representante da tecnologia nessa cultura. É inclusive correlacionado com o deus grego Hefesto, que forja ferramentas com o fogo dos vulcões, e que em sua versão romana é denominado Vulcano. Além desses há diversos deuses e deusas que nos contam histórias sobre a manipulação dos metais, nos trazendo ensinamentos e avisos de prudência.

Algo que faz parte da essência de Ogum é a sabedoria de que, sem generosidade, não existe prosperidade. Ogum partilhou de seu conhecimento para que a humanidade pudesse prosperar, "construiu uma casa e nela não colocou porta para que todos pudessem entrar.“[3] Por mais controverso que seja o impulso conquistador representado por ele, cuja "masculinidade iniciadora traz essa potência de força, astúcia e transformação ao custo da violência", ao mesmo tempo "só ganha sua máxima valorização se servir à comunidade."[4] No fim, o que Ogum conquista não é dele, é de sua comunidade.

Esse espírito de nutrição do comum pode ser encontrado nas histórias de outra deusa cultuada pelos gregos cujo simbolismo arquetípico se faz fundamental para essa reflexão. Uma das doze divindades do Olimpo, Héstia foi menos representada em forma humana, sendo principalmente simbolizada pelo fogo em si. Admirada por todos os deuses e honrada dentro de todas as casas com brindes antes de qualquer refeição, traz em seu significado profundo a ideia de uma chama sagrada que deve se manter sempre acesa em nós e entre nós. Sendo o fogo, é também o magma, centro flamejante desta Terra que chamamos de lar. Dentro de cada vulcão reside Héstia e dela provêm os metais com os quais forjamos as máquinas. Ogum depende desse fogo para manipular o ferro e nos beneficiar a todos. Héstia é representante da "virtude de permanência, de continuidade de enraizamento ao solo"[5] e a ela devemos honrarias se desejarmos continuar aqui. Para tal é importante lembrar que é na forma como fazemos algo que podemos sacralizar aquilo que é feito. Nossa casa comum, onde tudo que é significativo e sagrado reside, não vem sendo honrada. Substituídas as práticas de amor pelas práticas de desempenho, os desequilíbrios se multiplicam. A extração irrefreável dos chamados 'recursos naturais' em prol da criação de inovações de propósito e serventia questionáveis é a narrativa hegemônica que estamos escrevendo enquanto sociedade.

Em um de seus textos icônicos, Ursula Le Guin propõe um olhar sobre as narrativas que nos regem, repensando o caminho sócio-histórico a partir de uma ótica que refuta a atitude heróica, e recusa o conceito da pedra lascada e a lança de caça como primeiros artefatos da cultura humana, conferindo esse status à cesta ou sacola.

"Se é uma coisa humana guardar algo que você quer, que é útil, ingerível ou bonito em uma bolsa, ou cesta, ou um pouco de casca e folhas, ou uma rede feita do seu cabelo, ou qualquer coisa, e levá-la para o seu lar com você, o lar sendo um maior tipo de bolsa ou sacola, um recipiente para pessoas, e mais tarde você tira e come ou compartilha ou armazena para o inverno em um sólido recipiente ou guarda em um pacote de remédios ou no templo, ou no museu, a área que contém o que é sagrado, e no próximo dia você provavelmente faz a mesma coisa – se isso é ser humano, se esta é a condição, então eu sou humana no fim das contas. Completamente, livremente, felizmente pela primeira vez."[6]

Me pareceu curiosa a forma como a autora denomina o espaço do lar, precisamente o reino de Héstia, como uma bolsa onde guardamos a nós mesmos. Me leva a pensar na Terra como uma grande sacola onde vivemos, que nos guarda como pequenos elementos mundanos. De que forma agimos dentro dessa esfera e quais histórias contamos a ela sobre nós mesmas?

Le Guin aborda esse ponto dizendo que "se a ficção científica é a mitologia da tecnologia moderna então o seu mito é trágico. A ‘tecnologia’, ou ‘ciência moderna’ é um empreendimento heroico, hercúleo, prometeico", mas propõe que: “se pudermos ‘evitar o modo linear, progressivo […] do Tecno-Heroico, e se definirmos a tecnologia e a ciência como uma cesta cultural em vez de arma de dominação, um efeito colateral agradável é que a ficção científica pode ser vista como um um campo muito menos rígido e estreito."

A experiência vivida entre nós na Casa Batsú foi profundamente imbuída de cuidado. Em sua forma pouco cartesiana, foi muito construtiva. Seu aspecto mais circular que linear gera uma narrativa repleta de sutilezas, riqueza de reflexões e profundidade de conteúdos. Poderíamos então nos nutrir de experiências como essa ao projetar tecnologias digitais, pensando-as a partir de um panorama de cuidado? Algo que diz de uma disposição para considerar as diversas perspectivas de uma mesma situação e valorizar saberes de distintas natureza. Através disso cultivar uma atitude decolonial e plural, que se aplica através do questionamento crítico e investigação das motivações e estruturas por trás daquilo que é proposto, e principalmente da escuta do outro para a construção de uma ação a partir dessa interação entre essas perspectivas ao invés da imposição de uma ideia dominante. Talvez assim possamos nos espelhar em Ogum e passar a forjar os metais visando, antes de tudo, retornar com nossas sacolas repletas de reais benefícios à comunidade. Em sua música Lágrimas Negras, Jorge Mautner escreve que 'belezas são coisas acesas por dentro', frase que dá título a esse ensaio. Diz em seguida que 'tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento'. Vivemos sobre o magma, habitantes de um planeta aceso por dentro. Nela, os vulcões são portais que possibilitam o contato entre os dois mundos. Que diante da escolha que se apresenta a nós a cada instante, saibamos honrar a beleza de estarmos vivos em um lar cujo fogo vivo de Héstia ainda segue aceso. Lembrando sempre que para isso, é preciso enraizar a casa humana na Terra e prestar homenagens ao seu coração incandescente.

Footnotes

Notas

[1] poema XI do coleção Twenty-One Love Poems de Adrienne Rich's escrita entre 1974-1976

Cada pico é uma cratera. Essa é a lei dos vulcões,

que os manifesta como eternas fêmeas.

Não há altura sem profundeza, sem núcleo ardente,

[...]

aquele detalhe externo que nos leva para dentro,

estava ali desde antes, sabia que viríamos, e enxerga mais além.

Tradução de Sarah Valle Camargo

[2] Jeremy Hinsdale para a Columbia Climate School, 2022 https://news.climate.columbia.edu/2022/05/04/cryptocurrency-energy/

[3] "Foi Ogum quem ensinou aos homens como forjar o ferro e o aço.

Ogum ensinou aos homens o segredo da produção do alimento,

Dando-lhes o segredo da colheita,

Tornando-se assim o patrono da agricultura.

Ensinou a caçar e forjar o ferro.

Por tudo isso foi aclamado rei de Irê, o Onirê.

Ogum é aquele que tem uma casa onde todos podem entrar."

(PRANDI, 2001:85-109)

“Ògún Oníre
  Ohùn gbogbo ayé tí Ògún ni
  Ògún kọ́le, ko ni ilẹ̀kùn”
  (SÀLÁMÌ, 1991)

[4] A Masulinidade Iniciadora de Ogum, Dessalín Ìdòwú Malúngu Òkòtó, 2019 https://dessalinokoto.medium.com/a-masculinidade-iniciadora-de-ogum-ddaefd827cc2

[5] Mito & Pensamento entre os Gregos, Jean-Pierre Vernant, 1965

[6] The Carrier Bag Theory of Fiction, Ursula K. Le Guin, 1986

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